Imagem acima: cafeigravura

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Requentado


I

Toda noite à mesma hora
Os pássaros em seus galhos
Novas folhas entre as folhagens.

Cães e porcos disputam no grito
Os recheados sacos de lixo
Corpos de estranhos mutilados.

Os trabalhadores silenciam
As máquinas, exceto as tevês
Seus gritos de recém-nascidos.

II

Ao suor urbano mesclam-se essências
O cheiro da noite não lembra flores
Chuva, madeira, frutas ou ferro
É cheiro de lua, de estrelas e cometas
Botões que desabrocham na escuridão
Pólen brilhante
Infinito e distante.

III

Alho, cebola e manteiga
Roçam o olfato e minam saliva
Casas tornadas perfumarias
Essências de sentimentos
Alquímicos alimentos.

Carinho, sopa de sorver desejo
Não tão quente, aos bocados
Amor, pão de miolo algodoado
Ninam a alma e o estômago fraco.

Rancor fermentado em bule frio
Bebida rascante como unhas
Desce queimando
Veneno que mata mansinho
Adormecendo.

IV

Toda noite à mesma hora
Contempla o chão respingado
Os móveis congelados
Os quadros embaçados pela janta
A cadeira em frente interrogativa.

Ouve a rua, os vizinhos idos
O empurrão do vento nas folhas
Que se torna tapa e termina em afago
Um pássaro em chamas pia
As fuligens rabiscam a janela.

No silêncio a própria respiração
Aperta a garganta com dedos finos
O peito espeta e os olhos pesam.

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